O cálculo do impeachment é matemático. Moral é outra coisa

Em agosto de 2010, acompanhei um encontro do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva com empresários do Brasil e de El Salvador na sede da Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, na capital paulista. Faltavam cinco meses para o fim do seu mandato. O país estava prestes a registrar um crescimento econômico de 7,5% e o menor índice de desemprego em oito anos (6,7%).

O momento de euforia justificava o otimismo de visitantes e anfitriões. Tanto que o ex-operário parecia à vontade para desafiar, em público, os empresários presentes a dizer se tinham qualquer problema com o governo federal. “Todos ganharam muito dinheiro”, gabou-se Lula, para aplausos da plateia (eu vi, ninguém me contou).

Lula foi chamado pelo presidente de El Salvador, Mauricio Funes, como “melhor líder do mundo”. Recebeu afagos do presidente então em exercício da Fiesp, Benjamin Steinbruch. Lembrou, como algo distante, as desconfianças em torno da sua administração e ressaltou o bom relacionamento que manteve com o empresariado. Fez elogios a Antonio Delfim Neto, ex-ministro da Fazenda do regime militar, que o assistia na plateia. E arrancou risos quando disse: “Já vim mais para a Fiesp do que fui para a CUT, porque, certamente, santo de casa não faz milagre”, afirmou.

Quem estava naquele encontro e hoje vê a campanha da Fiesp e do grosso do empresariado pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, que seria eleita naquele ano, corre o risco de dizer que não se trata do mesmo país, nem dos mesmos empresários, nem do mesmo grupo político. Os atores são os mesmos, mas os índices, não. A inflação, no ano passado, chegou a dois dígitos, o PIB caiu 3,8% e a tendência é que em 2016 o tombo seja ainda maior.

Os humores são bem outros desde aquela tarde em agosto, e parte disso é resultado da deterioração do ambiente político. Dilma terminou o primeiro mandato em pé de guerra com o mercado, que não engoliu as intervenções consideradas excessivas na economia, como o preço do combustível e da energia elétrica, e com a oposição e com a própria base aliada, que desde o primeiro dia se queixava de uma certa arrogância do governo, então no pico da popularidade, em relação às demandas dos parlamentares.

No limite, o distanciamento explica a ascensão, por exemplo, de uma figura como de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), rei do baixo clero, e a sucessão de trocas no comando da articulação política (que já foi, quem se lembra?, de Michel Temer) e econômica (três ministros em cinco anos) ilustra o ambiente nebuloso para quem precisa de um mínimo de visibilidade para fazer o carro andar. Este carro tem dois eixos, um econômico e outro político. Um não funciona sem o outro.

Em 2014, com os índices econômicos já frustrados, Dilma se reelegeu numa disputa tão violenta quanto apertada. Queimou pontes com aliados importantes no caminho, como o PSB, e assistiu a uma nova debandada de lideranças petistas, Marta Suplicy à frente. Hoje estão todos a favor do impeachment.

Enfraquecido, o governo ficou cada dia mais dependente do PMDB, aliado esfomeado que o amou por alguns meses, sete ministérios e muitos contos de réis. Em falta, o apoio ao governo sofreu um processo inflacionário e colocou a presidenta num dilema entre petistas que não queriam ceder e neoaliados que não se contentavam com o espaço oferecido.

Alguns deles já estavam enrolados até o pescoço na Lava Jato e já não viam no governo qualquer bote de salvação. Cunha puxou a retirada, mas não só: cuidou de espalhar dinamites pelas pontes e acendeu o fósforo. Ele chegou ao posto armado e a possibilidade de um tiroteio ao menor sinal paralisou qualquer agenda positiva do governo em meio à crise econômica. Quando o país travou, a impaciência dos empresários e dos aliados (até a segunda página) política passou a convergir com a impaciência das ruas e detonou uma série de revoltas organizadas. Dilma ficou só.

No domingo, os deputados devem decidir, com quase um ano e meio de atraso, se o governo Dilma pode finalmente começar ou terminar por causa das pedaladas fiscais às quais metade dos governadores pelo país já recorreu. Do lado de fora, uma multidão dividida em dois promete se estapear entre palavras de ordem que, dentro dos corredores do Congresso, são meras abstrações ou meros pretextos retóricos: democracia, moralidade, luta anticorrupção.

Quem tem cargo e quem de fato financia a atividade parlamentar têm cálculos menos, digamos, morais e filosóficos na batalha em que se transformou o debate sobre o impeachment. Querem perspectiva de poder, e não se importam com a aparente contradição em mudar de barco ou humor quando entendem que quem deveria criar condições perdeu as condições de governar. Querem solução, não importa quem o faça.

Michel Temer, figura obscura já citada na Lava Jato e sem, até aqui, apoio popular, virou tábua de salvação de quem busca um desfecho rápido (não necessariamente profundo) da crise, para poder retomar a vida regular. Ele, na avaliação dos apoiadores dessa saída, tem algo que Dilma não tem (ou perdeu). O cálculo é matemático: na melhor das hipóteses, um tem dois terços (ou quase) do Congresso, mesmo se perder; a outra tem um terço (ou quase), mesmo se ganhar.

Aqui abril de 2016 se distancia de março de 1964: na época, o presidente João Goulart tinha na manga as suas reformas de base, entre as quais a reforma agrária, das quais a elite não queria ouvir falar; Dilma, ao que se sabe, não tem um plano similar, exceto um conjunto de ajustes fiscais já definidos pelos entendidos no assunto como inadiáveis para controlar os gastos, a dívida pública e colocar o país nos trilhos. Dilma, se cair, não cairá pelo temor de colocar o plano em prática, mas pelo temor de não conseguir implantá-lo.

Nas entrevistas dos grandes empresários sobre o cenário político e econômico atual não se observam jargões que só os apaixonados de um lado e outro do muro utilizam para defender uma bandeira. Em vez disso, falam em “ambiente”, “visibilidade”, “confiança”. O apoio ou não a este ou aquele governante tem menos a ver com a ficha criminal dos postulantes. Se tivesse, jamais apoiariam a possibilidade de um governo Temer/Cunha.

A matemática em tempos de crise é mais simples que qualquer filosofia da moral: ganha quem tem mais condições de emplacar a agenda de reformas imposta de fora para dentro.

Em tempo. Alguns meses depois, em 1º de janeiro de 2011, acompanhei a chegada em casa do já ex-presidente Lula em São Bernardo após transmitir o cargo na cerimônia de posse de Dilma Rousseff. A rua de sua residência estava em festa, com direito a show de Sergio Reis. Lula subiu a um palco improvisado ao som do “Tema da Vitória”, tocada quando Ayrton Senna vencia corridas de Fórmula 1.

Pediu que o povo amasse a sua sucessora como o havia amado e fez uma menção especial ao único e fiel aliado que o acompanhou de Brasília até a porta de casa. “Quero agradecer ao companheiro Sarney que, quatro anos atrás, me disse que, quando terminasse meu mandato, ia vir até a porta do meu apartamento me entregar e veio.“

Hoje Sarney e Sergio Reis fazem coro aos pedidos de impeachment. A realpolitk não perdoa amizades nem gosto musical.


Foto: Lula Marques/Agência PT